Discernimento é uma palavra pouco presente no
vocabulário cristão. Os leitores e leitoras de espiritualidade extremista que
me perdoem, mas creio estar sendo fiel à realidade eclesial de muitas
comunidades de fé. Também a prática do discernimento, em si, está ausente.
Discernir é distinguir, com alguma sabedoria. Distinguir, aqui, corresponde a
uma atitude espiritual: movimento do espírito.
Cristãos e cristãs mais “fervorosos”
tendem ao radicalismo. A linha entre esse fervor sob aspas e o fanatismo é
muito tênue. É preciso elaborar a experiência religiosa e não ficar presos a
ela. Para isso o discernimento é imprescindível. O que acontece, geralmente, é
que no lugar do discernimento, que coloca a consciência do sujeito sob o risco
da tomada de posição, o caminho mais fácil assumido por muitos é o da negação
das realidades, como fuga da responsabilidade de posicionarem-se. Condena-se
tudo, de antemão, como pecaminoso e contrário à vontade de Deus.
Se pararmos para observar as duras críticas
de Jesus feita ao farisaísmo, perceberemos que ela está para além da
hipocrisia. Onde há excessos escassez de legislação, falta sabedoria. O
cânon bíblico já foi fechado, mas cristãos e cristãs continuam a criar leis,
por pura covardia de tocar o mundo, lugar concreto onde há que se viver o
Evangelho com radicalidade e não com radicalismo.
Muitos cristãos e cristãs criaram a ilusão de
que vivem uma vida santa, porque criaram uma bolha que os separam do mundo. A
santidade está, exatamente, em tocar o mundo e não se apartar dele: o mistério
da encarnação do Filho de Deus – radicalizada em sua morte – é sinal inconteste
disso: o véu da separação entre sagrado e profano se rasgou. O trabalho da vida
de muitos cristãos e cristãs consiste em reatar o véu partido, na busca por
garantir uma separação que não é saudável, porque não alcança o real da vida
nem os dramas concretos que ela contém.
Orar e vigiar, incessantemente, é caminho
para o discernimento e não para a fuga em nome de uma santidade irreal. “Sede
santos, como vosso Pai é santo” não corresponde a uma fuga do mundo, mas a uma
apropriação dele, envolvendo-o com a santidade que vem de Deus, pois é isso
mesmo que ele faz, quando assume a vida humana em seu Filho. Viver no mundo,
mas sem estar preso a ele, porque o Reino de Deus o extrapola. Mas é no mundo
que é preciso ser sal e luz: o sal precisa estar entranhado; e a luz irradiada.
Não é sábio acender uma lâmpada para colocá-la debaixo da cama. Quando os
cristãos e cristãs demonizam o mundo, sem mais, em nome da fé e da fidelidade a
Deus, estão fazendo justamente isso, escondendo a lâmpada do Evangelho e
privando o mundo do seu sabor.
Jesus não se pautou no 8 ou 80. O que
não significa que ele não tenha sido firme e fiel em sua missão e vocação e,
mais que isso, a seu Pai. O seu “sim” era “sim” e o seu “não” era “não”, não no
sentido de fugir do mundo, mas na coragem de tocar no que havia de mais belo e
de mais horrível nele. Ele sabia que seu lugar era junto de seu Pai, mas isso
não significava viver alienado de seu lugar histórico. Muito pelo contrário:
ele fez sua história no testemunho de quem é fiel a seu Pai e à sua missão, sem
a covardia travestida de santidade. Afinal, quem quiser salvar a própria vida,
precisa correr o risco de perdê-la...
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